quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Terceiro dia da expedição - Não chora, china véia


Taquaruçu - Sítio de Pedro Felisbino

Objetivo: chegar a Taquaruçu – primeira cidade santa dos sertanejos.

Distância de Caçador a Taquaruçu: 79 km.

Tempo de viagem (estimado): 2h



          Acordei às seis da matina com a música que o padre Lídio Milani usa como despertador no seminário. Estava muito cansado e fiquei um pouco mais na cama. O friozinho de Caçador convida sempre para uns minutinhos a mais debaixo do edredom. Às sete tomei café. Quando estava saindo do refeitório tive a grata visita do padre Lídio. Minha saída para Taquaruçu teria que aguardar um pouco. Padre Lídio é um homem muito sábio e puxa conversa para me alertar sobre o fim do mundo. “É o apocalipse, meu filho”, constata quando analisa a postura dos governantes mundiais. Instigo o velho sacerdote com algumas perguntas e ele não perde a pose. Responde cada uma com serenidade e lucidez misturados com conhecimento. Padre João Casara chega e fazemos, eu e ele, uma platéia para o discurso inflamado de Milani. Não poupa ninguém; nem a cúria romana. Vale ressaltar que as oitenta e cinco primaveras não tiraram-lhe o bom humor. A conversa se desenrola com muitos risos e indagações. Desembaraçado, não titubeia nas respostas. Quando o assunto passa à política ele antecipa: “Não vou votar na Dilma”. E completa: “Vou votar na Marina”. O padre João pisca o olho para mim e alfineta o idoso: “Mas Marina é crente, padre. O senhor vai votar numa crente?” Ele dá o xeque mate: “É cristã, isso é que é importante”. O papo vai por uma meia hora. Peço-lhe uma entrevista e ele promete dar. Disponibiliza-se a responder qualquer tipo de pergunta.

          Tomo banho e sigo para Taquaruçu. Passo antes no posto de gasolina e alimento o alazão. Os raios solares me enganam e opto por não colocar a calça própria para frio e chuva. É um equipamento que tira muito a mobilidade de quem o veste. E se abdiquei da calça, renuncio também as botas. Um jeans e uma botina caem bem, avalio. Ledo engano.

A estrada: 
 

Portal turístico - Fraiburgo


Entrada para Taquaruçu e Frei Rogério



 
         De caçador até o trevo de Videira a SC-453 mostra-se em ótimo estado. É uma mesa de bilhar com aproximadamente 30 quilômetros. Chegando ao trevo segue-se na direção de Fraiburgo – terra da maçã. Aí a porca torce o rabo. É um tal de buraco no atacado que Deus me livre. Minha sorte é a moto off-road. A suspensão trabalha alucinadamente. Depois de atravessar toda a cidade e passar o portal turístico, pega-se o acesso que conduz à BR-470. Nem imagine encontrar placas para Taquaruçu. Marque 4km após o trevo e olhe para uma estrada de terra à esquerda, em frente a um ponto de ônibus. É o caminho para Frei Rogério e Taquaruçu. Avisaram-me que havia placas. É, havia. Agora sim, “cumpade”, o bicho pega. São 26 km até a Cidade Santa de Taquaruçu. Pedras soltas, buracos e curvas vão se misturar na tentativa de impedir minha chegada ao local onde os sertanejos se organizaram pela primeira vez. Eu sabia que a estrada tinha muita ponta de pedra e calibrei os pneus com a maior pressão possível. A medida evita possíveis furos na câmara de ar, mas deixa a montaria nervosa como o “diacho”. Procure placas para Frei Rogério. Você passará pelo Faxinal dos Carvalhos e, com um pouco de sensibilidade, vai se perguntar se mudou de país. Caso sinta-se perdido, pergunte aos trabalhadores que estão nas muitas plantações de alho e cebola que margeiam a estrada. Não espere pelas placas, elas são encantadas.
 
O melhor trecho da estrada para Taquaruçu

Taquaruçu

          Cheguei ao museu de Taquaruçu quando se aproximava das 11 horas. Perguntei onde ficava a casa de Pedro Felisbino – um agricultor historiador. Mais umas subidas e descidas e vi o potreiro que leva à propriedade do escritor de voz de caboclo. Quem me recebeu foi a esposa dele, Lora Felisbino. “Ele foi ver umas vacas, mas ta chegando. Pode entrar para esperar por ele”, convidou com uma simpatia ímpar. Conversamos um pouco e saboreei uma maça crioula – colhida na propriedade. Aproveitei para limpar a vista com a paisagem do lugar. Imaginei Tomaz Antônio Gonzaga escrevendo Márilia de Dirceu em um lugar como aquele. Não demorou e Pedro chegou. Bem na hora em que eu ajudava Lora a botar uma vaca para dentro do sítio. O sorriso dele é capaz de fazer Mao Tsé-Tung desmanchar o rosto taciturno. Felisbino tem 66 anos e nasceu em Santo Amaro da Imperatriz, município da grande Florianópolis. Mudou-se para Taquaruçu aos 8 (ou seria 10?, ele não sabe ao certo)anos, acompanhando os pais que subiram a serra por questão de saúde, ou falta dela. Desde a mais tenra idade viu-se rodeado por caboclos remanescentes dos “tempos dos redutos” – a denominação Guerra do Contestado é uma construção recente. Conheceu antigos protagonistas da guerra. Um dos pares de frança, Noratão, contou-lhe detalhes sobre as “peleias” contra o exército. Ao meio dia almoçamos uma comida maravilhosa feita pela companheira de Pedro. Sentamos à mesa, Pedro, Lora, Pedrinho – neto -, e eu. Como estamos nas comemorações da Semana Farroupilha o guri me apareceu todo piuchado, vindo da aula. Puxou um violão e tocou uma moda gaúcha. Não fiquei para trás e arrisquei uma não chora minha china véia, não chora. Tava feito o salseiro.


Pedro Felisbino mostra bombas detonadas sobre a cidade

          Após a refeição fomos conhecer o solo sagrado da antiga cidade. Taquaruçu era, à época, distrito de Curitibanos. E disputava com esta o primado da região. Taquaruçu era, inclusive, maior e mais desenvolvida que a rival. Quem ganhou, entretanto, o estatus de município, foi Curitibanos. Isso porque o homem forte da povoação era o coronel Albuquerque, apaninguado dos Ramos. Sendo o governo do Estado exercido por um Ramos, fica claro o motivo de Taquaruçu ter sido escanteada. O fato é que em Taquaruçu morava o coronel Henrique Almeida, adversário político de Albuquerque. E, só para você entender, quando José Maria, um curador de ervas, veio para a festa de Bom Jesus do Taquaruçu – uma espécie de sírio de Nazaré de serra acima – os sertanejos fizeram a animação durar mais do que devia. Albuquerque, enciumado, instigou a força policial catarinense a expulsá-lo do lugar. Por isso ele foi para o Irani com alguns seguidores. Para ser mais exato, ele voltou para o Irani, pois de lá viera. E no Irani José Maria foi morto. O que poucos sabem é que o Irani ficava nos chamados Campos de Palmas, e um coronel de Palmas/PR, o Amazonas Pimpão, já se apoderara das terras. Uma grilagem mais comum na época do que propina para políticos hoje em dia. Ou seja, José Maria é expulso de Taquaruçu por causa de um coronel catarinense e cai nas mãos de outro, paranaense. Passado quase um ano da morte de José Maria, os sertanejos se reorganizam em Taquaruçu. Criam uma cidade onde acreditam que a igualdade reinará. Albuquerque inventa que eles estão proclamando a volta da monarquia e promove o massacre do lugar pelo exército brasileiro. Nas primeiras investidas das forças legais sobre Taquaruçu os sertanejos saem vitoriosos. Receosos de um massacre os homens se retiram do lugar e deixam apenas mulheres, crianças e idosos na cidade. Ficou também uma pequena milícia de 70 homens para conter um possível ataque. Acreditavam na benevolência dos militares. “Santa ingenuidade, Batman”, diria Hobin”. No raiar do dia 8 de fevereiro de 1914 as bombas varreram Taquaruçu do mapa. Os 70 homens entrincheirados para uma possível defesa dos mais fracos não tiveram chance. Claro que algumas pessoas escaparam e criaram outra cidade santa. Surgiu Caraguatá, que visitarei em breve. 

Taquaruçu foi arrasada duas vezes - pelo fogo do exército e pelas águas da indiferença

          Pedro me leva para conhecer o museu. Ele iniciou o curso de história aos 61 anos e é autor de dois livros – Voz de Caboclo e Frei Rogério. Peço para conhecer o lugar exato onde ficava a cidade santa de Taquaruçu. Ele aponta para um açude. “Ali ficava Taquaruçu. Fizeram um açude”, lamenta com voz embargada. Segundo ele, o proprietário do terreno ficava incomodado com a presença de pessoas interessadas em conhecer o lugar.
          E resolveu afundar a história.
          O historiador me indica o lugar exato em que ficava a igreja: um poste de energia. “Quando eu era mais jovem a gente jogava bola em cima da antiga cidade. Às vezes achávamos ossos inteiros. Uma vez pegamos um braço e comparamos com o nosso para saber se a pessoa era maior ou menor que a gente”, recordou. Fico pasmo com a ignorância dos governantes catarinenses.
          Aonde já se viu, imagino, alagar um sítio histórico!

Antigo caminho das tropas - a vegetação e os sedimentos apagam os vestígios da história
           Fizemos uma visita às antigas estradas dos tropeiros e fiquei extasiado só em pensar que naquele chão caminharam homens e mulheres valentes, espoliados por coronéis, abandonados pelo poder público e incompreendidos pelos religiosos da época. Tristeza e alegria podem coabitar no coração de um ser humano?, sim, descobri naquele momento. Mais uma vez comprovo que o Contestado é, para os donos do poder, uma ferida que precisa ser escondida, já que não pode ser curada. Pedro me levou para conhecer uma família cabocla e aproveitei a ocasião para entrevistar um senhor de 80 anos, cujos pais foram sobreviventes do massacre à cidade. Depois voltamos para a casa dele onde eu deixara a motocicleta. Eu não poderia recusar o lanche. Quando terminamos faltavam dez minutos para as seis. O retorno não seria dos mais fáceis.

Casa de caboclo


Sebatião Moreira - Os pais escaparam do massacre de Taquaruçu


A volta

          A estrada esburacada exigia que eu pilotasse o maior tempo possível em pé. Os pneus com calibragem alta, para evitar furos, deixavam a moto menos aderente e exigia uma pilotagem tracionada o tempo todo. As pedras soltas ameaçavam me derrubar a cada curva – que não eram poucas. Para completar, de vez em quando o por do sol lançava raios em minha direção. Nessas horas eu precisava guiar com uma mão só. A outra eu usava para colocar acima dos olhos e diminuir a sabotagem do astro rei. Com um pequeno detalhe: eu precisava chegar à Videira antes de escurecer. Em setembro os dias já começam a se alongar mais, em relação ao inverno. Todo o trecho de estrada de terra e o asfalto até Videira exigem boa visibilidade da parte de um motociclista. Qualquer vacilo, um abraço. Infelizmente não pude parar e fazer fotos do pôr do sol. O verde claro das plantações de cebola, alho e aveia contrastavam com o escuro das frondosas araucárias. Retive nos olhos, foi o jeito. Mantive o motor da moto em giro alto e cutuquei no acelerador. Acho que fiz o percurso em tempo record para um motoqueiro. Passei em Fraiburgo quando a noite dava o ar da graça. A moto não respeitava os buracos da estrada e eu me segurava no guidom. Quando cheguei ao trevo ainda havia um lusco fusco. Ufa!

          De videira a Rio das Antas foi tranqüilo. A pista é bem sinalizada. A escuridão desbancou os últimos vestígios do dia. Aproveitei os faróis traseiros de um carro à minha frente e me deixei guiar. O veículo parou em Rio das Antas e fiz os últimos 20 quilômetros sob a pouca luz da moto. Já eram sete e vinte da noite quando adentrei ao QG. As mãos doiam de tanto frio. As luvas que comprei na Hparts revelaram-se modestas para enfrentar as baixas temperaturas. logo lembrei as palavras do vendedor: "Estas luvas - disse o mal profissional - são usadas pelo pessoal que vai de moto para o Chile". Não chamarei o rapaz de mentiroso porque mentiroso é o praticante de mentiras. Talvez essa tenha sido uma isolada, o que não o torna um mentiroso. Já a empresa, sinceramente. Hora de tomar um banho e sair para conversar com um agrimensor. O homem é filho de outro agrimensor, já falecido, que fez o mapeamento das terras onde ficava a última cidade santa cabocla. Ele me apresentou alguns mapas cartográficos datados de 1925; um achado. Por volta das 23h30 retornei. Caindo de sono ignorei o computador. Só acordaria no dia seguinte. Boa noite, padre Lídio.



 

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Em Taquaruçu, de vez em quando aparecem pesquisadores que realizam coletas/amostra de dados empíricos no sentido de descreverem tendencialmente o que pensam. Eu morro ha 42 anos no Taquaruçu, convivi e convivo com caboclos e imigrantes a todo esse tempo, conheço as igualdades e as desigualdades que existe em nossa comunidades e como esses elemento existem em outras comunidades também. O que não pode-se aceitar é aventureiro que nunca vimos por aqui, desconectados da realidade, chegar julgando isso ou aquilo, sem conhecer as pessoas da comunidade e sua realidade, ficar publicando texto a estilo "Zorro em Cima de uma moto" alegando que essa é a forma de trabalhar o tema do Contestado. Pior ainda, quando utiliza o povo e a comunidade para benefícios lucrativos e comerciais. Qualquer escritor com metodologia ética, estaria conversando com a comunidade, ou com os grupos de organização da comunidade analisando se a descrição é isso mesmo. Temos lideres de caboclos ativos no processo de construção da comunidade e o que está descrito não é de conhecimento da comunidade e muito menos foi debatido sobre isso. A comunidade é formado pela ação, pelo pensamento, pelo trabalho, pela participação, das pessoas que dela participam. Não pode ficar restrito a um pensamento.
    Falar é fácil. Escrever é fácil. Viver a práxi é o desafio.
    Como relação a frase: "Taquaruçu foi arrasada duas vezes - pelo fogo do exército e pelas águas da indiferença" O texto também descreve que foi feito "o lago foi feito para apagar a história", na nossa opinião é falta de entendimento e pura mentira de quem afirmou isso. O lago não foi feito para apagar a história. A água foi simbolismo de vida para São João Maria. Essa história ninguém apaga. É pura ignorância pensar isso.
    Pelo pelos para os movimentos sociais que estiveram aqui na 5ª Semana Social Brasileira, o Lago, a água é isso que representa. Para tanto, podemos criticar, sugestionar, desde que participamos do processo a ajudamos/colaboramos para que ele aconteça. Descrever algo que apenas penso é puro egocentrismo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tudo conversa furada. O que foi publicado foram fatos. Alagaram a cidade de Taquaruçu. É fato. Ao invés de pedirem desculpas, tentam jogar pedra em quem relata o que está aí pra todos verem. O comentário desastroso acima só confirma a maneira pífia como a memória da guerra foi manipulada pelos dominadores, Porque duvido que o autor do lamentável comentário seja descendente de caboclos.

      Excluir