O centro de Curitibanos, na época da guerra, era aqui |
Décimo dia da expedição
Destino: sede da antiga superintendência (prefeitura) de Curitibanos incendiada pelos sertanejos.
Distância: 100 km
Choveu durante toda a noite em Caçador. A cidade estava precisando da água, pois a estiagem durara quase dois meses. E os sertanejos catarinenses não poderiam suportar mais um mês de seca, conforme ouvi de vários agricultores do lugar. Confesso que as confissões dos trabalhadores fizeram-me lembrar da força e da coragem dos moradores do sertão nordestino. Os caras agüentam até mais de um ano sem chuva. Quando um pecuarista de Timbó Grande me contou que várias reses haviam morrido e que era preciso da ajuda do governo, caso não chovesse, recordei das críticas – duras, diga-se de passagem – que ouço à política do governo Lula. Vezes sem conta escuto gente bradar: “esse papo de bolsa família é puro assistencialismo. Quem quiser que trabalhe para ganhar dinheiro”. Menos de dois meses de estiagem são mais do que suficientes para provar que pimenta nos olhos dos outros é colírio. E se você, nobre cúmplice meu, é meio desbocado, pode substituir os olhos e o colírio por outras palavras mais próprias. Acordei de madrugada e, egoisticamente, pedi a Deus para que fechasse as torneiras no dia seguinte. É brabo pilotar na chuva.
12 reses haviam morrido nos últimos dez dias aqui |
Às sete horas fiz meu desjejum na companhia dos meus novos amigos. Minhas preces não foram ouvidas; a chuva persistia. Lá pelas oito o aguaceiro amainou e pude pegar a estrada. Não sem antes me despedir dos companheiros de QG. Dei uma parada na oficina e pedi para apertar a corrente, jogar um óleo nela e passar graxa. Depois foi só alimentar o alazão e deixar Caçador para trás. O asfalto molhado, e melado de barro, era uma ameaça à motocicleta. As muitas estradas vicinais são puro barro vermelho. Quando chove, o barro vira uma pasta que gruda nos rodados dos caminhões. Conclusão: os caminhões deixam um rastro enlameado no asfalto. É um sabão. Menos de vinte quilômetros de percurso foram suficientes para me alertar do perigo que me aguardava. Enquanto descia um morro vi alguns galhos de árvore no meio da pista. Diminuí a velocidade e quando cheguei à curva me deparei com uma carreta tombada. O motorista, que seguia no sentido Curitibanos-Caçador, perdeu-se e invadiu a mão contrária. Parei a moto e logo chegou uma viatura da polícia. O caminhoneiro saiu ileso. O guarda me alertou: “Tá chovendo em todo o Estado. Prepare-se para pegar muita chuva”. Agradeci o aviso e segui.
Um aviso para ficar experto |
Quando cheguei a Lebon Régis fui até a casa de dona Nercina, a neta de Neco Pepe que tem um museuzinho em casa. Quando eu a visitara, no domingo, falei-lhe de um livro que contava a história do avô dela. Prometi-lhe fazer uma cópia e, quando fosse para Curitibanos, passaria passaria em sua casa e lhe entregaria. Nem a chuva forte impediu-me de cumprir a promessa, afinal de contas não sou nenhum presidenciável. Aproveitei o ensejo e fiz algumas fotos de uns bairros onde os moradores descendem dos caboclos espoliados da Guerra do Contestado. Quanta pobreza.
Bairro onde a maioria dos moradores descende dos caboclos da guerra |
Na beira da estrada que liga Lebon Régis a Curitibanos tem uma capelinha em homenagem a São João Maria. Claro que fiz umas fotos. Os 50 quilômetros entre as duas cidades foram sacrificantes. A chuva apertou. Os buracos da estrada, embora pequenos, aumentavam o risco de queda. É que a lâmina d’água esconde os “marditos”. É preciso manter os olhos bem abertos e os pulsos firmes, caso contrário, mais um número para as estatísticas de acidentes de moto. Passava das onze horas quando cheguei a Bundaritibunda – é como costumo chamar a cidade onde nasceu meu amigo Bruno. Não é falta de respeito, acredite. É pura brincadeira. Falta de respeito pela cidade quem teve foi o coronel Albuquerque, antes, durante e depois da guerra do Contestado. Curitibanos foi incendiada pelos jagunços, frisam certos historiadores. Na verdade foram queimadas a sede da superintendência (prefeitura), o cartório e as casas dos correligionários do coronel Albuquerque. Visitei o museu, fiz algumas fotos do local onde ficava a antiga prefeitura e me mandei.
Capela de São João Maria - Lebon Régis |
Praça da República - Destaque para o museu |
Almocei em Lages, na casa de um casal muito querido. A senhora é descendente da família Ramos, a maior oligarquia catarinense no período da Guerra do Contestado. Por volta das 14 horas peguei a BR-282 com rumo a Florianópolis. A viagem transcorreu sem nenhum incidente. Passava das 17h quando subi a rampa do prédio em que moro. Estacionei a motocicleta, tirei a bagagem e dirigi-me ao elevador. Um banho quente e demorado me esperava. Depois do banho, estiquei-me na cama e vi minha mente ser sacudida por pensamentos, sentimento e certezas. Foram dez dias de contato com uma história que ainda pulsa no sertão de Santa Catarina. Dez dias de convívio com pessoas simples que acreditam em um santo – João Maria – que não merece nem um email do Vaticano. Dez dias de mergulho em um lugar cujas pérfidas e avaras atitudes de homens públicos transformaram em vergonha. Dez dias no seminário diocesano de Caçador, cujos seminaristas e padres, sem exceção, jamais serão esquecidos do meu coração. Dez dias vendo a miséria de muitos se dobrando a riqueza exploradora e maligna de tão poucos. Dez dias nas terras em que andaram homens que não aceitaram se dobrar ao canhão do tirano dominador. Dez dias aprendendo que uma história, por mais que os governantes queiram apagá-la, pulsa. E pulsa. E pulsa. Há tempos eu não chorava.
"Dissestes que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira..."
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira..."
Legiao Urbana
Composição: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá
show de bola teu diário, tua viagem, tua história. parabéns.
ResponderExcluirLegal Lillo, conheci mais detalhes de uma história que conhecia muito superficialmente. Jornalismo é isso, ...é ir às fontes. Valeu!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA imensa dor que sentes. 100 anos depois os problemas ainda estão lá.
ResponderExcluir